O sistema de gestão das águas e os eventos climáticos extremos

A reflexão mais importante que podemos fazer nesse mês setembro de 2023, enquanto assistimos a devastação causada por enchentes, poucos meses depois de uma longa estiagem do ponto de vista do Sistema de Gestão das Águas é que o Estado do RS chegou a esse ponto por não ter aproveitado melhor o seu Sistema Estadual de Recursos Hídricos (SERH). 

Ele foi criado em 94, depois de uma grande luta popular, em várias regiões do Estado, mas até hoje não foi plenamente implantado.

Muitas coisas seriam diferentes no enfrentamento dos desafios das estiagens e das enchentes se o sistema tivesse evoluído como previsto na sua origem.

Certamente estaríamos bem melhor preparados para lidar com as conseqüências de todos esses fenômenos meteorológicos extremos que nos assolam. Provavelmente já teríamos soluções implantadas ou, no mínimo, apontadas em construções políticas coletivas com todos os atores sociais, políticos e econômicos que tem representação nos comitê de bacia.

De fato estamos pagando um preço alto por escolher, como Estado, outras prioridades.

Só para lembrar o Sistema Estadual de Gestão das Águas prevê a gestão por bacias hidrográficas. Para cada uma das 25  bacias do RS ele prevê  a implantação de um comitê com representantes eleitos ou indicados. 40%  eleitos pela sociedade da bacia; 40% eleitos pelos representantes dos agentes econômicos que usam água e 20% indicados pelo governo. No modelo gaúcho esses plenários tem uma secretária executiva associada e contam com o apoio de uma agência de bacia para fazer a parte técnica. O plenário indica, a partir de estudos técnicos, as obras e ações para manter ou recuperar a qualidade das águas e regular a sua quantidade ao longo do tempo para todos os usos na bacia. Isso é consolidado num plano de bacia que tem como base de avaliação, objetivos de qualidade, chamados enquadramento das águas, também definidos pelo comitê. Tanto os objetivos de qualidade como o plano de bacia são acordados politicamente procurando harmonizar os conflitos entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico. Os recursos para as obras vêm de fontes publicas e privadas. A principal fonte prevista é a cobrança pelo uso das águas. Mas ele também racionaliza outras fontes públicas e privadas aumentadas à eficiência de suas aplicações porque indica com clareza os pontos onde estes beneficiam maiores contingentes e população com menores custos.

São instrumentos que lidam com todos os temas ligados a água e balizam a seu uso racional por meio de uma política de gestão democrática desse bem natural essencial a vida.

O principal  problema do SERH é que até hoje não foram implantadas a agência de água e nem a cobrança pelo uso.  O sistema opera de forma capenga muito mais por iniciativa da base local de cada comitê, mas com significativa ausência da maioria dos setores do Estado fora da área ambiental. Por isso os planos de bacia ficam sem um agente executivo e a falta de cobrança inviabilizaria a execução de ações dos planos por falta de recursos. Outros recursos são desperdiçados por falta de um planejamento mais elaborado de aplicação.

Ainda há que se considerar que além de apoiar ações e obras, a cobrança de água também induz o uso mais racional pelos agentes econômicos diminuindo a pressão sobre o meio natural de onde ela é captada.

Com isso se deixam de fazer obras e ações com uma visão de bacia que é a unidade territorial natural da água.

Sabemos que o uso do solo urbano e rural interfere na disponibilidade hídrica de uma região. A gestão das águas indica parâmetros para os gestores públicos que orientam a ocupação e uso ajudando no ordenamento da ocupação do território. Com isso prevenindo os impactos  negativos de um mau uso do solo na qualidade e quantidade de água para a população humana e a vida selvagem.

Hoje vivemos a realidade de eventos extremos que os ecologistas sempre anunciaram. Esses representam um novo desafio para gestão das águas. Especialmente na tomada de medidas para prevenir as secas e também às enchentes. Também representam desafios para gerenciar a distribuição de água para população e os agentes econômicos e dar parâmetros para o sistema de proteção ambiental controlar a poluição. Sem um sistema de gestão das águas ficamos sem fóruns regionais com real poder de tomada de decisão para decidir onde é melhor investir e o que fazer para proteger a população e o meio ambiente dos danos que esses eventos podem causar. Como a água não segue os limites políticos municipais essas decisões têm que ser tomadas em escala regional com visão de bacia. Só assim se pode entender melhor a dinâmica dos impactos de eventos extremos e onde intervir para proteger melhor toda a população de uma região. Sem visão de bacia se entra numa disputa entre setores econômicos e governos municipais em que alguns podem se beneficiar, mas outros terem os impactos aumentados.

Um dique de proteção de enchente de um lado de um rio que divida municípios pode salvar uma cidade, mas afogar a do outro lado.  Uma barragem no lugar errado pode garantir água para um setor econômico na seca e deixar outro desabastecidos.

Sem planejamento com visão de bacia os impactos de eventos extremos podem atingir de modos desiguais diferentes setores da sociedade. O que já ocorre hoje, pois em geral eles impactam com mais gravidade os setores pobres da sociedade que, em geral, vivem em áreas de maior risco.

Apesar de todos os alertas sobre a necessidade de impor limites ambientais aos processos produtivos e a gestão pública a variável econômica segue sendo a que comanda a tomada de decisões tanto pelo poder político como empresarial.

O poder econômico, depois de anos sendo muito pressionando pela sociedade civil para tomar medidas de proteção à natureza, hoje se apresenta como verde e está num processo ativo de que afrouxar as legislações de proteção as águas e a natureza que, na visão deles, prejudicam seus interesses imediatos. Num mundo em que o poder econômico se concentra cada vez mais essa visão consegue se impor, tanto por mecanismo de força como de sedução do imaginário coletivo, sobre os interesses da vida da maioria da população, que pressionada pela crise econômica, não consegue se organizar tanto como alguns anos atrás para buscar seus direitos. O que têm aberto  espaço de poder para forças políticas extremante conservadoras que defendem interessantes dos setores mais ricos.

A crueza destes fatos vem sendo postas a nu pelos impactos cada vez mais evidentes das mudanças climáticas. Elas também estão fazendo com que fique evidente o preço que estamos pagando de não termos implantado a totalidade do Sistema Estadual de Recursos Hídricos. O Estado que hoje lida com grandes tragédias que ceifam vidas e trazem grandes prejuízos econômicos, chegou nesse ponto por não ter aproveitado melhor o seu sistema de gestão das águas. Estamos sem um ferramental político e técnico capaz de lidar com a magnitude dos desafios e basicamente correndo atrás da máquina para socorrer as vítimas de cada tragédia sem evoluir para ações de longo prazo capazes de controlar as causas das mudanças climáticas que causam essas tragédias. Muitas coisas estariam evoluindo  de forma diferente se o sistema estivesse implantado na totalidade  de sua concepção. Estaríamos mais bem preparados para o enfrentamento dos desafios da falta ou de excesso de água que estamos vivemos em 2023. Com certeza estaríamos mais bem preparados para lidar com esses fenômenos todos e com muitas ações soluções implantadas ou pelo menos delineadas e recursos sendo captados para executá-las.

Oxalá nossos gestores e a grande maioria da população possam perceber esse fato e fazer avançar o modelo gaúcho de gestão das águas que já foi pioneiro no Brasil e, como em outros Estados, o implante na sua totalidade para fazer frente, com uma perspectiva de adaptação e superação aos eventos decorrentes das mudanças climáticas que tentem a se manifestar cada vez mais entre nós enquanto o resto do mundo não faz a sua parte para eliminar as suas origens que hoje ainda seguem sendo as bases de nosso modelo de  vida moderno.

Arno Kayser

Agrônomo, ecologista escritor

Comente ou deixe um trackback: URL do Trackback.

Deixe um comentário